domingo, 17 de janeiro de 2010

HAITI E COPENHAGUE



Pe. Alfredo J. Gonçalves, CS

Os fenômenos se repetem e se multiplicam com uma força cada vez mais devastadora: inundações, furacões, tempestades avassaladoras, terremotos, frio e calor extremos, chuvas em excesso, nevascas, deslizamentos de terra... São ocorrências que, nas últimas décadas, ganham páginas e páginas dos jornais e espaço na mídia em geral. “O mundo está dos avessos”, diria o povo; “sinais dos tempos”, diria a teologia de inspiração cristã. Cabe a pergunta: trata-se de catástrofes naturais ou de reações violentas da natureza à ação humana igualmente violenta sobre ela?

O fato é que as vítimas contam-se aos milhares e milhões. Mortos, feridos, mutilados, desabrigados, famílias e casas reduzidas a escombros, cidades e campos devastados, países inteiros tomados pelo sofrimento. Na mesma proporção das catástrofes, aumentam também os chamados “refugiados climáticos”, um novo rosto cada vez mais presente e numeroso no campo da mobilidade humana. Sós, perdidos e sem pátria, para onde fugir? Onde se refugiar?

No momento é o Haiti que se encontra conflagrado pelo terremoto ocorrido no dia 12 de janeiro pp. Felizmente a solidariedade mundial, realizada por pessoas, entidades e nações, volta o olhar para esse pequeno e pobre país do Caribe. Como manter de pé a dignidade humana de cada um de seus habitantes? Como resgatar a memória histórica de luta e resistência de seu povo? Como reconstruir o país, antes tão frágil e agora praticamente devastado?

Vale aqui sublinhar o gesto da Dra. Zilda Arns, fundadora da Pastoral da Criança, e que, apesar da dor, da perda e da separação dolorosas, colheu uma morte gloriosa, em plena fronteira de sua incansável campanha, mártir da solidariedade para com os pobres. O martírio em Porto Príncipe, capital do país mais pobre das Américas, lhe confere, sem dúvida, uma coroa de amor e doação que salvou a vida de milhares de crianças pelo Brasil e outros países do mundo.

Os gestos, porém, devem acompanhar a grandeza das catástrofes. E aqui é fundamental o papel das agências, das autoridades, dos religiosos, dos cientistas e dos políticos nacionais e internacionais. A ONU, o FMI, o G8 ou G20, os fóruns econômicos e sociais, e outras instâncias do gênero, necessitam com urgência repensar o modelo sócio-econômico e político de exploração dos recursos naturais. É loucura exigir da terra um ritmo que ela não tem capacidade de suportar, afirmam hoje estudiosos do meio ambiente, filósofos, movimentos ecológicos e até a população nas ruas. A herança do iluminismo racional e da Revolução Industrial e Tecnológica desencadeou uma trajetória sob todos os aspectos irracional. Trajetória egoística, marcada pelo individualismo exacerbado da filosofia neoliberal, que pensa apenas no conforto máximo da geração atual.

Claro que não podemos, sem mais, atribuir o tremor de terra do Haiti à política econômica. As coisas não são tão simples e mecânicas. Mas permanece de pé o fato de que é ilícito, imoral e ilegítimo devastar o planeta para garantir o padrão de vida das minorias ricas e privilegiadas, em detrimento das maiorias marginais. Estas acabam vivendo em condições tão precárias que qualquer tipo de catástrofe ganha proporções bem mais trágicas e avassaladoras. Os abalos sísmicos podem ser inevitáveis, mas suas conseqüências poderiam ser melhor controladas, se a nação atingida dispusesse dos serviços minimamente indispensáveis.

Daí que as catástrofes se tornam, ao mesmo tempo, climáticas, políticas, econômicas, culturais e sociais. Tendem sempre a dizimar os setores mais desfavorecidos, abandonados e indefesos da população. Nesta perspectiva, riqueza e pobreza constituem não dois estágios de desenvolvimento, mas duas faces da mesma moeda. Uma é fonte e causa da outra. O acúmulo de um lado se dá à custa da miséria do outro.

O círculo vicioso do produtivismo e consumismo, do crescimento a qualquer preço, bem como o cassino mundial da especulação financeira, devem ser combatidos com todas as forças. A paranóia do crescimento como panacéia para todos os males deve ser substituída, de um lado, por uma política ampla e internacional de melhor distribuição da renda e dos benefícios do progresso. De outro lado, torna-se urgente desenvolver uma convivência justa, solidária e sustentável com o planeta e com todas as formas de vida, a biodiversidade. Só assim, populações como as do Haiti, de vários países caribenhos, africanos, asiáticos e latino-americanos estariam protegidos contra o furor mortífero de determinadas tragédias. É neste sentido que não é exagero estabelecer uma ligação, embora complexa, entre Haiti e Copenhague.

sábado, 2 de janeiro de 2010

MENSAGEM DO PAPA BENTO XVI

MENSAGEM DO PAPA BENTO XVI
PARA O 96º DIA MUNDIAL DO MIGRANTE
E DO REFUGIADO (2010)

"Os migrantes e os refugiados menores"

Queridos irmãos e irmãs

A celebração do Dia Mundial do Migrante e do Refugiado oferece-me novamente a ocasião de manifestar a solicitude constante que a Igreja alimenta por aqueles que vivem, de vários modos, a experiência da emigração. Trata-se de um fenómeno que, como escrevi na Encíclica Caritas in veritate, impressiona pelo número de pessoas envolvidas, pelas problemáticas sociais, económicas, políticas, culturais e religiosas que levanta, pelos desafios dramáticos que apresenta às comunidades nacionais e internacional. O migrante é uma pessoa humana com direitos fundamentais inalienáveis que devem ser respeitados sempre e por todos (cf. n. 62). O tema deste ano, «Os migrantes e os refugiados menores», refere-se a um aspecto que os cristãos avaliam com grande atenção, recordando-se da admoestação de Cristo, que no juízo final considerará referido a Ele mesmo tudo o que é feito ou negado «a um só destes pequeninos» (cf. Mt 25, 40.45). E como não considerar entre os «pequeninos» também os migrantes e refugiados menores? O próprio Jesus, quando era criança, viveu a experiência do migrante porque, como narra o Evangelho, para fugir às ameaças de Herodes, teve que se refugiar no Egipto juntamente com José e Maria (cf. Mt 2, 14).

Embora a Convenção dos Direitos da Criança afirme com clareza que deve ser sempre salvaguardado o interesse do menor (cf. art. 3), ao qual se devem reconhecer os direitos fundamentais da pessoa ao mesmo nível do adulto, infelizmente na realidade isto não acontece. Com efeito, enquanto aumenta na opinião pública a consciência da necessidade de uma acção pontual e incisiva em protecção dos menores, de facto muitos são abandonados e, de vários modos, encontram-se em perigo de exploração. Da condição dramática em que eles vivem fez-se intérprete o meu venerado Predecessor, João Paulo II, na mensagem enviada a 22 de Setembro de 1990 ao Secretário-Geral das Nações Unidas, por ocasião do Encontro Mundial para as Crianças. «Sou testemunha – ele escreveu – da condição lancinante de milhões de crianças de todos os continentes. Elas são mais vulneráveis, porque menos capazes de fazer ouvir a sua voz» (Insegnamenti XIII, 2, 1990, pág. 672). Formulo votos de coração para que se reserve a justa atenção aos migrantes menores, necessitados de um ambiente social que permita e favoreça o seu desenvolvimento físico, cultural, espiritual e moral. Viver num país estrangeiro sem pontos de referência efectivos cria-lhes, especialmente àqueles que estão desprovidos do apoio da família, inúmeros e por vezes graves incómodos e dificuldades.

Um aspecto típico da migração de menores é constituído pela situação dos jovens nascidos nos países receptores, ou então por aquela dos filhos que não vivem com os pais emigrados depois do seu nascimento, mas que se reúnem a eles sucessivamente. Estes adolescentes fazem parte de duas culturas, com as vantagens e as problemáticas ligadas à sua dúplice pertença, condição esta que todavia pode oferecer a oportunidade de experimentar a riqueza do encontro entre diferentes tradições culturais. É importante que lhes seja oferecida a possibilidade da frequência escolar e da sucessiva inserção no mundo do trabalho, e que seja facilitada a integração social graças a oportunas estruturas formativas e sociais. Nunca se esqueça que a adolescência representa uma etapa fundamental para a formação do ser humano.

Uma categoria particular de menores é a dos refugiados que pedem asilo, fugindo por vários motivos do próprio país, onde não recebem uma protecção adequada. As estatísticas revelam que o seu número está a aumentar. Por conseguinte, trata-se de um fenómeno que deve ser avaliado com atenção e enfrentado com acções coordenadas, com oportunas medidas de prevenção, de salvaguarda e de acolhimento, segundo quanto prevê também a própria Convenção dos Direitos da Criança (cf. art. 22).

Dirijo-me agora particularmente às paróquias e às muitas associações católicas que, animadas por um espírito de fé e de caridade, envidam grandes esforços para ir ao encontro das necessidades destes nossos irmãos e irmãs. Enquanto exprimo gratidão por quanto se está a realizar com grande generosidade, gostaria de convidar todos os cristãos a tomar consciência do desafio social e pastoral que apresenta a condição dos menores migrantes e refugiados. Ressoam no nosso coração as palavras de Jesus: «Era peregrino e recolhestes-me» (Mt 25, 35), assim como o mandamento central que Ele nos deixou: amar a Deus com todo o coração, com toda a alma e com toda a mente, mas unido ao amor ao próximo (cf. Mt 22, 37-39). Isto leva-nos a considerar que cada uma das nossas intervenções concretas deve nutrir-se antes de tudo de fé na acção da graça e da Providência divina. De tal modo, também o acolhimento e a solidariedade para com o estrangeiro, especialmente se se trata de crianças, torna-se anúncio do Evangelho da solidariedade. A Igreja proclama-o, quando abre os seus braços e trabalha para que sejam respeitados os direitos dos migrantes e dos refugiados, estimulando os responsáveis das Nações, dos Organismos e das Instituições internacionais, a fim de que promovam iniciativas oportunas em seu benefício. Vele materna sobre todos a Bem-Aventurada Virgem Maria, e ajude-nos a compreender as dificuldades daqueles que estão distantes da própria pátria. A quantos estão empenhados no vasto mundo dos migrantes e refugiados, asseguro a minha oração e concedo de coração a Bênção Apostólica.

Vaticano, 16 de Outubro de 2009.


BENEDICTUS PP. XVI